21 março, 2005

A força das coisas

Não era do homem de cinqüenta anos que eu tinha saudade; não era daquele justo sem justiça, de arrogância desconfiada e rigorosamente mascarada, que rasgara meu coração ao consentir nos crimes da França; era o companheiro dos anos de esperança, cujo rosto despojado brincava e ria tão bem, o jovem escritor ambicioso, louco pela vida, por seus prazeres, por seus triunfos, pelo companheirismo, pela amizade, pelo amor e pela felicidade. A morte o ressuscitava; para ele, o tempo não mais existia, o ontem não tinha mais verdade que o anteontem; Camus, tal como eu o amara, surgia na noite, no mesmo instante reencontrado e dolorosamente perdido. Sempre que morre um homem, morre uma criança, um adolescente, um jovem: cada um chora aquele que lhe foi caro. Caía uma chuva fina e fria; na avenida Orléans, mendigos dormiam nas soleiras das portas, encolhidos e transidos de frio. Tudo me dilacerava: aquela miséria, aquela infelicidade, aquela cidade, o mundo, e a vida, e a morte.

Simone de Beauvoir (a força das coisas)

1 comentário:

Anónimo disse...
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